terça-feira, janeiro 11, 2005

cadernos do laçarote – XVIII

rua antónio aleixo
11.Janeiro.2005
23h09




Antes de os colonos chegarem, o largo do Kinaxixe, no centro da cidade, era ocupado pela lagoa do Kinaxixe, local que animava ideias do imaginário africano, como a de Kianda, divindade do mar confundida, por nós, com uma sereia. Com o largo desapareceu a lagoa e cresceram alguns prédios à sua volta. O da imagem acima, conhecido como o 'prédio em construção do Kinaxixe', é um edifício de dez andares que nunca foi acabado, o que não impediu que fosse ocupado após a independência e que hoje albergue muitas famílias. Tem luz, vida e um buraco cheio de água ao lado - a nova lagoa do Kinaxixe.


Desde que cheguei a Portugal que fiquei com a impressão de que tinha deixado o trabalho incompleto, mas tem-me faltado tempo para reparar a obra. Impõe-se, claro e com teria de ser, um grand finale levemente moralista, com observações sérias, avisos pensados e um olhar crítico-nostálgico-melancólico. Vou despachar isso num instante e considerar o assunto encerrado.

As duas ideias centrais:

#1: Quem pode, não vive bem - vive MUITO bem.

#2: A pobreza e a extrema riqueza convivem lado-a-lado, em (aparente) pacífica convivência e sem distâncias ou segregação.

Efectivamente, a vida boa é muito boa. Mas tem um custo elevado, muito elevado; o qual, podendo pagar-se, permite fazer umas flores que não se arranjam nesta estufa. Prova disso - entre outras, como o elevado custo das habitações de luxo dos bairros mais bem-postos da capital - é a frota automóvel do país, já aqui mencionada. É piada recorrente, e nem por isso menos verdadeira, afirmar-se que, quando se quer ter a certeza se determinado carro já foi lançado no mercado mundial, vai-se à rua da sede da empresa petrolífera nacional e confere-se se já lá está estacionado. Há mesmo quem diga que certos modelos aparecem lá antes de serem anunciados nas revistas da especialidade.

O que também é verdade é que, nessa mesma rua, se encontrarão os mesmos miúdos de rua, a pedirem, a venderem e a lavarem carros; as kitandeiras nos passeios ou a passarem com o produto sobre a cabeça e tudo o resto que se vê em todas as ruas da capital, seja nos bairros finos, seja nas travessas mais esconsas ou vias rápidas engarrafadas. Isto foi, para mim, uma novidade neste tipo de países, já que me habituei a ver as zonas 'nobres' vedadas à indigência autóctone. Aqui não, a cidade é una e aberta a todos, ricos e pobres obrigados a conviverem e a sofrerem uns com os outros.

A pobreza, apesar de muita, nada tem que ver com as imagens das crianças subnutridas e com os abutres a sobrevoarem-lhes a cabeça que normalmente associamos à miséria africana. Existirá, por ventura, mas a que está mais presente é a pobreza do dia-a-dia, não obstante parecer que, em termos de bens supérfluos, certas classes da sociedade - e não me refiro às mais elevadas - já terem uma boa dose de ocidentalização desnecessária e anacrónica. Falta o resto: mais básico, mais necessário, mais valioso.


Graffiti nos destroços da isolada aldeia do Bom Jesus

Uma tentação que se é levado a ter após as primeiras horas é achar que está tudo para fazer, que qualquer negócio vingará ou que todas as iniciativas poderão ter sucesso. Alguns dias depois, somos confrontados com o facto de o país já há muito ter sido descoberto e podemos ter a certeza que todas essas ideias já alguém teve. O difícil não é ver o que falta, mas poder fazê-lo. E ser entendido, numa cultura que o que tem de comum com a nossa foi imposto durante e há muitos anos e que, se calhar, tem preocupações mais genuínas do que aquilo que, hoje, nós entendemos como necessidades.

Enfim, a cidade, em resumo, e a sua organização social - a nossa - pareceu-me um produto desnecessário para quem dela iria fruir, cujo manual de instruções não foi entregue ou devidamente traduzido para a essência de quem a iria habitar. E hoje, apesar de tudo, o sol nasce, quente, e quatro ou cinco rapazes e raparigas dançam efusivamente na esplanada de uma praia ao som de um música altíssima, enganando alguns trabalhos de limpeza quem alguém decidiu ser importante atribuir-lhes.