quarta-feira, dezembro 29, 2004

cadernos do laçarote – VII

travessa engrácia fragoso
26.Dezembro.2004
18h25 em Portugal


Sentado na sala a ver canais de televisão portugueses, estremeço ao aparecer-me o Pedro Mexia no ’Eixo do Mal’: t-shirt, camisa e pullover. Esta imagem faz-me correr até à cozinha para atestar um copo com água gelada. Ao regressar à sala, mudo para a RTPi e sou presenteado com uma reportagem sobre a qualidade da água nos concelhos alentejanos, demasiado má para consumo humano. Resultado final: 2-1 para esta região, com o empate da água a ser desfeito pela temperatura que aqui se tem em Dezembro.

Hoje foi um dia com muita quilometragem, o que possibilitou o meu primeiro contacto com terrenos fora da capital.

O dia no exterior iniciou-se no Rialto, restaurante-bar na avenida marginal. Inspirados pelas pratalhadas de batatas fritas que vimos servidas à mesa do canto, partimos em direcção à Barra do Dande, numa viagem guiada pelo autóctone Vadinho. Saindo para norte, tive o meu primeiro contacto com a Boavista, musseque construído ao longo de uma barroca sobre o porto e que esconde o famoso mercado do Roque, verdadeira loja de conveniência onde se pode encontrar tudo a céu aberto, desde esquentadores, medicamentos, couves e fruta, granadas, areias e britas, mercenários ou tabaco. Na estrada imperava o caos, como sempre impera. Sem regras, o trânsito faz-se de buraco em buraco, nas estradas e nas bermas, esquerda direita ziguezagueando entre as Hiaces dos candongueiros (motoristas de táxis particulares, não oficiais, que fazem corridas com velhas carrinhas das cores das Nações Unidas atulhadas de gente), pobres chaços a precisar de reforma e os últimos modelos da indústria automóvel, jipes, SUVs e desportivos que nunca se viram em Portugal. Ao longo da estrada está a população, ora a vender o que quer que tenham conseguido arranjar, ora a dançar, a correr, a olhar e esperar que passe o tempo.


Musseque da Boavista

Mais adiante, viramos numa curva à direita para uma estrada de terra batida, a subir em direcção a um terreiro com algumas estruturas de madeira e palhinha, barracas e caramanchões. Os jipes ficam logo rodeados de crianças, que os acompanham correndo até ao local onde é possível estacioná-los. É a chegada ao mercado da Vidrul.

Os miúdos, mal saímos, colaram-se a nós, pedindo as ‘boas festas’, a ‘gasosa’ (expressões utilizadas para pedir dinheiro) ou tentando vender sacos de plástico para as compras no mercado. Olhando em redor, a imagem é a que se habitualmente se imagina de África, só que demasiadamente real. Enquanto comprávamos fruta e vegetais às mulheres que estavam no chão, uma mola humana acompanhava-nos, sem nos incomodar, sem nos tocar, sem violências, apenas com o silêncio da sua imploração e pedidos; indefesos, muito mais do que nós, quatro estranhos cercados num meio que não era o seu.

Seguimos viagem pela estrada do Cacuaco, correndo ao longo da conduta de abastecimento de água da capital. As guaritas de poucos em poucos metros atestam a importância que estes tubos tiveram durante a guerra, ideia reforçada pelos postos de controlo da polícia, semi-desactivados, que filtravam as estradas e saídas da cidade por esta estrada. À medida que nos afastamos, o trânsito, cada vez menos, torna-se inversamente proporcional à qualidade das estradas e a paisagem, passada a cidade e os musseques, torna-se mais verde, avistando-se os primeiros embondeiros, com os seus grossíssimos troncos retorcidos e características folhas a guardar as múcuas. Já depois de um desvio para uma estrada secundária, os últimos quilómetros antes da barra são feitos num caminho sempre em direcção ao mar, com troncos de palmeira a ladearem a estrada e uma abundante mancha de borboletas brancas sempre diante de nós, a soltar-se constantemente da vegetação ao longo do caminho.

A barra do rio Dande, ainda – e felizmente – pouco explorada, conta com meia-dúzia de casas, maioritariamente de pescadores. São estes que possibilitam a passagem de uma margem para a outra, onde uma cama de areia com palmeiras à cabeceira promete bom descanso. Também são eles que permitem que possamos ter dois pequenos tubarões nas nossas mãos para posar para a fotografia. A boa-vontade partiu de um casal que encontrámos na margem, preparando o produto da última pescaria: ele, de faca na mão, a cortar e a limpar o peixe; ela, igualmente de cócoras e com o filho às costas descaído sobre a cintura, a lavar as peças que ele lhe dava e a prepará-las para a venda.


Barra do Dande

Voltámos para trás pela mesma estrada e o almoço fez-se na Panguila, num jango (construção rústica de canas, madeira, palhinha e folhas de palmeira feita para abrigar reuniões, almoços, convívios) à beira da estrada. A ementa foi a que habitualmente se pede aí à família da Antónia: cacusso, feijão de óleo de palma, banana, mandioca e farinha. Uma boa refeição, passe as moscas, interrompida por alguns vendedores de artesanato, músicos e pela evidência da simplicidade do céu africano.

O regresso pouco mais teve para contar. Já na capital e antes de aqui chegar, fomos até à Cidade Alta, zona isolada da cidade que alberga o palácio presidencial e os principais edifícios governamentais. O contraste com o resto da cidade, apesar de previsível, é completamente desconcertante, parecendo Copenhaga, por comparação, uma cidade suja e confusa. Aproveitámos também para fazer uma passagem pelos terrenos já vindimados da Samba, da Corimba, do bairro Azul e da praia do Bispo, numa busca a velhas construções encomendada por antigos colonos. Não as identificámos; talvez nunca se tenham identificado.


Pôr-do-sol visto da Corimba