já que falamos do outro
«Toda uma outra parte dos móveis, e sobretudo umas magníficas pratas antigas da minha tia Léonie, vendi-as, contra a opinião dos meus pais, para poder dispor de mais dinheiro e enviar mais flores à senhora Swann, que me dizia ao receber açafates imensos de orquídeas: "Se eu fosse o senhor seu pai, arranjava-lhe um curador judicial." Poderia eu lá supor que um dia viria a lamentar particularmente a perda daquelas pratas e a colocar certos prazeres acima daquele, que viria talvez a tornar-se absolutamente nulo, de fazer gentilezas aos pais de Gilberte! Fora também por causa de Gilberte, e para não a abandonar, que decidira não entrar na diplomacia. É sempre e só por causa de um estado de espírito sem futuro duradouro que tomamos resoluções definitivas. Custava-me a imaginar que aquela substância estranha que residia em Gilberte e irradiava para os pais, para a sua casa, tornando-me indiferente a tudo o resto, pudesse libertar-se, emigrar para outro ser. Que fosse de verdade a mesma substância mas que produzisse em mim efeitos completamente diferentes. Porque a mesma doença evolui; e um delicioso veneno não é já tolerado da mesma maneira quando, com os anos, diminuiu a resistência do coração.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - À Sombra das Raparigas em Flor
Tradução de Pedro Tamen para a Relógio D'Água.
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